Archive for November, 2008

Superando Paulo Leminski

Wednesday, November 26, 2008

Fui deitar meia hora antes do que preciso. Eu já estava calculando o tempo extra que gastaria pra pegar no sono essa noite, pensando na prova do dia seguinte. Não era qualquer prova. Se me saísse mal, não teria chance de recuperar. Ou eu passava ou já era, Joel.

Quando acordei, às sete, estava morto de sede. Mas não bebi água só pra não ter vontade de mijar na hora da prova. Por mais que eu saiba que o sistema nervoso, simpático que é, não permite esvaziar o conteúdo da bexiga, só a sensação dela cheia poderia ser fatal.

Chegando lá, sentei na calçada esperando a minha vez. Olhei discretamente em volta, torcendo pra não reconhecer nenhum conhecido. Tinha só uma ruivinha que eu já vira uma vez no prédio. Nessa hora lamentei o preconceito da sociedade que não me permitiria usar uma daquelas calças de ginástica coladas para deixar o examinador mais sensibilizado.

Inclusive! – meu instrutor virou pra mim e falou – te apresenta lá. Mas que coisa, como podia a minha bexiga estar tão cheia? Entrei no Celta. Um cheiro misterioso de mercaptana estava preso dentro do carro. Uma forma de protestar do cara que fez a prova antes de mim, reprovado por subir no meio fio. Girei a chave, baixei o freio de mão. Essa parte eu sabia bem. Minha perna esquerda tremia tanto que o controle da embreagem praticamente se deu sem a minha participação consciente. Fiz a baliza lembrando de não derrubar os bastões.

Virei à equerda, à direita, parei no pare, reduzi marcha. Em geral fui dirigindo. Só não dirigi uma palavra sequer ao examinador. Não por nervosismo, mas porque eu estava ocupado demais rezando para o carro não apagar.

Não apagou. Quando já estava no trajeto de volta, feliz, imaginando o telefonema que daria para o meu irmão dizendo “passei, yeah baby!”, surgiu um pequeno (se me permite o eufemismo hiperbólico) obstáculo: um caminhão. E ele não quis saber de parar, o que me colocou em dúvida se a preferência era dele ou minha. Aí eu lembrei que estava louco pra mijar, que estava ameaçando chover, que o examinador tinha cara de mau e que o cara antes de mim tinha subido na calçada. Só tranqüilizei quando ouvi do até então calado examinador “Porra, tem cada filhadaputa sem noção”. Era o sinal divino de que a preferência era minha.

Fim. Ele, calado, anotando um monte de coisas. Notei até gotículas de suor escorrendo de sua careca. Sr. Inclusive, pode chegar aqui. Meus parabéns, o senhor está aprovado. Só não o abracei porque achei que um aperto de mão seria mais condizente com a minha macheza. Tenha um bom dia, senhor.

Subi na bicicleta e fui pra casa, sorrindo sozinho e pensando em quanta água eu ia poder tomar agora.

 

P.S.: O título desse texto não se refere, é lógico, à habilidade de escrever, mas ao fato de que Paulo Leminski morreu aos 44 anos de idade sem saber dirigir.

meio-termo

Monday, November 24, 2008

“Pode ser”, “mais ou menos”, “tu que sabe”...

Eu odeio o meio-termo. ele me irrita. eu prefiro errar completamente do que acertar “mais ou menos”. odeio a cara que te olham quando dizem isso. pressupõe-se que ela não tem opinião, ou não conhece muito bem o assunto. ou não quer te magoar, ou quer se iludir (admitir que um outro é melhor, desagrada muita gente).

Eu sei, sei que esse texto ficou uma bosta. mas não diga que ficou mais-ou-menos.

Três segundos

Monday, November 24, 2008

– Alô.
Vai chegar tarde?
– Lá pelas onze.
Faz um favor?
– Alô.
Compra quatro paçocas?
– Pra quê, Deus?
– Alô.
Pra pôr na vitamina.
– Alô.
É pro Denis…
– Alô.
…ele gosta.
– Alô.
Chegar aqui…
– Alô.
…eu te pago.
– Alô.
Tem como?
– Tou atrasado.
Compra na volta.
– Vai tar tudo fechado.
É mesmo.
– Alô.
Então deixa.
– Alô.
Obrigada.
– Alô.
Não vai falar “de nada”?
– Não.

O parto

Thursday, November 20, 2008

Começa com um xixi. Vou ao banheiro antes mesmo de ter acordado e vejo um pedacinho de papel higiênico dentro do vaso, mas fora da água. Miro em cima dele, gosto de ver o papel absorvendo o líquido. Parece uma reação química.

Entro no elevador. Antes, é claro, certifico-me de que o mesmo está parado neste andar. Na descida, torço para ninguém entrar, não porque eu estivesse com pressa. É simplesmente para não ter que fingir ler algo no celular como forma de disfarçar o constrangimento de estar preso com alguém num espaço de um metro quadrado e não ter nada pra dizer à pessoa. 1903. Acabo de descobrir mais uma senha de alguém para o alarme do prédio. Deve ser por causa do ano de fundação do Grêmio.

De longe vejo: vêm vindo duas garotas, uma bonita e outra feia. Olho só para a feia. Afinal, a bonita já sabe que é, não preciso confirmar isso pra ela. Além do mais, é bom para disseminar a dúvida na cabeça dela. Você acha que não, mas as bonitas sempre dão uma conferida se estamos olhando. É precisamente naquela hora em que você já desistiu de encará-la por ter perdido a esperança que ela olhe de volta. Faça o teste.

Entro na sala, dou os bom dias que julgo necessários e me sento. Vai começar a aula. Sistema complemento, complexo de histocompatibilidade principal, logaritmo. Sinto minha perna tremer. É só o celular vibrando, chegou mensagem. “Assina o meu nome aí pelamordequalquercoisa”. Pronto. Nasceu meu primeiro sorriso do dia.

Porto Alegre valendo o toba

Tuesday, November 18, 2008

Irmão, dá umas moedas aí pra inteirar minha passagem pra Porto? Pô, tá cheio da nota e não quer dar. Nem vinte centavos? Um hippie da roupa mais detonada da minha vida me disse isso enquanto eu estava indo almoçar no Gangrena’s. Já vi isso em algum lugar.

Lá na faculdade é assim: os que têm os melhores currículos podem optar por fazer seu último ano e meio de curso na capital. Porto Alegre é a terra prometida. Sim, eu sou louco pra ir pra lá. Mas não vou transformar minha estada aqui entre os hebreus numa batalha incessante na qual vale tudo, desde esconder provas contrabandeadas até fazer estágio sobre o tratamento de bicho de pé humano e suas implicações na vida do homem moderno, só pra enfeitar o currículo.

Antes que digam que é só dor de cotovelo minha (já tem gente convicta disso desde a sexta linha do texto), vou logo reafirmando: sim, sou louco pra ir pra província. Lá tem tudo o que eu preciso, desde churros a cinqüenta centavos até algum show da Tequila Baby. Mas será que então a minha opinião deixa de ser válida?

Competição eu sabia que ia ter desde o início. Mas não é preciso sabotar ninguém. O pior é que os mais criticados são aqueles que competem consigo mesmos. Não deveriam ser censurados. Competir com si próprio é crescer, buscar aperfeiçoar-se (muitas vezes). O que não vale é cegar o bisturi do colega, cuspir no óleo de imersão alheio ou inventar que não-sei-quem é servente de pedreiro.

Porto Alegre ainda vai ser nossa, cabe todo mundo. Só não precisa empurrar. Nem mendigar nota que nem o hippie.

Próxima parada

Saturday, November 15, 2008

A música clássica fora interrompida suavemente por uma voz sexy, igual àquelas das locutoras-de-aeroportos. próxima parada, estação praça eufrásio correia, disse ela, e logo depois da tradução em espanhol e em inglês, a música voltou. Normalmente, nos dias de semana, há tanta gente dentro do ônibus que a locução passa desapercebida. Mas hoje, nessa altura da madrugada, na iminência de amanhecer, ouvi perfeitamente tanto a música quanto a voz que indicava as próximas paradas.

Percebo que há dois garotos, no segundo banco. Como já é novembro, e pelo mesclado de stress com insegurança, concluo que estão conversando sobre o vestibular. A essa hora, devem estar indo ao cursinho, ou, pouco provavelmente, voltando da noitada. Lá no último banco tem um casal romântico falando em inglês, e à minha frente, pessoas comuns, ansiosas por mais um dia de trabalho, ou por encontrar um emprego, ou para passear no calçadão. Sair de casa. Algumas delas saíram de casa com um único objetivo: porque não gostam de ficar em casa, enquanto outras deixaram o lar simplesmente porque gostam de sair. Atitudes iguais, causas muito diferentes. Ver apenas os fatos e atitudes é facil, mas…

estação praça osório. próxima parada: estação praça ucrânia.

Volto à realidade. Como eu amo esse lugar. Essa praça com árvores gigantes, um chafariz velho mas bonito e nascente do primeiro calçadão do Brasil! Enquanto o ônibus pára, desce a rampa na estação e alguns poucos passageiros sobem, penso em como esse lugar é tão prazeroso. Mas sou apenas um turista aqui, penso em seguida, embora eu não dependa dessa voz sexy para me localizar. Minha época de orgulhoso habitante já se foi. Não posso viver aqui, embora seja o que eu mais quero. É muito perfeito para mim, e como de praxe, nada acontece como realmente se quer, pelo menos é isso que acontece comigo.

Agora tá tocando um Bach. É bom ficar na sanfona dos ônibus biarticulados, gosto de ter que tirar o pé daquele círculo no chão quando o ônibus vira, e sempre que eu passo a mão na sanfona cinza, sinto-me livre em saber que o que me separa da rua, do frio, da chuva e do sol é apenas um plástico cinza endurecido. Descobri que a sanfona entre as portas 2 e 3 é a melhor para se ficar,por uma questão de logística, fica entre as duas portas que podem se abrir quando tu vais descer do ônibus.

Vejo os infinitos prédios, os anúncios de shows de rock colados nas madeirite das construções e nos postes, as pessoas, a rua 24 horas, o hangar, o centro velho, que se transforma em um reduto de metaleiros e roqueiros a noite. É um lugar que nunca pára culturalmente. Poucos lugares orgulham seus habitantes. Esse é com certeza um deles…

– estação praça ucrânia. próxima parada: estaç...(tosse, tosse)

Mas o que mais me atrai não é isso. É que eu me sinto bem nessa cidade. Minha mente pede aqui. E nada, nem inimigos que eu puder ter, namoradas que eu puder perder, doenças que eu tiver, tirará esse meu sentimento. É aqui que eu desço.

Investígio

Friday, November 7, 2008

Parar diante da porta aberta. Taí uma coisa estúpida de se fazer. Mas nela não pareceu estúpido. Nada parece. Falava sobre não-sei-o-quê enquanto eu viajava nos vales e montes (vales, com certeza vales). Era sobre um acidente de quando era pequena que havia inclusive deixado marcas e tal. Nessa hora eu olhei bem pra ela, com uma sensação engraçada e incômoda ao mesmo tempo. Engraçada porque eu sabia que estava olhando com a menor discrição do Brasil; incômoda porque o que pensei naquele momento era algo muito difícil de conseguir. O fato é que eu tinha acabado de definir o ideal da minha vida: aquelas cicatrizes.

Um colega (de quem eu nem gosto tanto) uma vez me disse que cicatriz era uma coisa massa de se ter e que se não conseguisse uma até os 22, ele mesmo fabricaria. Pois bem. Tou pra completar 23 e quero uma dessas. A do meu queixo não serve, toda criança já bateu o queixo na pia, na calçada, na cabeça de alguém. Tinha que ser aquelas cicatrizes. Cicatriz de arame farpado, de faca, de caco de vidro. Até de apendicite valia à pena. Com certeza valia. As dela eram de não-sei-o-quê, especificamente.

Com um ímpeto que não é comum em mim, fui ter com aquela garota (ela sabe até falar alemão, meu Deus!). Mas toda vez que eu chegava mais perto eu esbarrava naquele anel. Não era qualquer anel. Era daqueles que ficam onde um homem mais tem medo: no dedo que fica ao lado do mindinho da mão direita. Tenho certeza que nele estava escrito o nome de alguém. Alguém que não era eu.

Se eu nunca tivesse feito catequese, se a irmã Inês nunca tivesse me mostrado os dez mandamentos, talvez não fosse tão mau ver aquele anel. Mas não, desde criança me outorgaram o que Moisés apresentou ao povo de Israel. “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Se bem que se parar pra pensar, até gosto de olhar para aquele anel. É como quando a gente tem um daqueles machucadinhos vermelhos e ardidos perto da unha por causa de cutículas indevidamente arrancadas. Mesmo sabendo que dói, nos sentimos tentados a dar uma apertadinha. Olhar o anel me dá essa sensação. Sei que dói, mas não resisto e de vez em quando desvio o olhar para ele. Quem sabe no fundo no fundo é uma esperança de um dia mirar aquela mão de dedos tão finos e brancos e não encontrar aquele anel lá. É. Deve ser isso.

Nos pequenos bilhetes que eu mando, já falei de tudo para me fazer entender. Tudo que mostrasse como eu me sinto: vida em outros planetas, teoria evolucionista, conspirações neomalthusianas. Mas eu sabia que tinha que ser mais que isso. Eu não podia mais deixar pedra sobre pedra.

Falo com ela, digo que penso tanta coisa (e penso mesmo) e tal. Mas não digo nada demais. E assim fico até a hora do boa noite. Minha última oportunidade e não posso desperdiçar. Mentalizo que tomei umas cervejas para me sentir mais desinibido. Boa noite, sonhe com sorvete – eu, triunfal, digo. De flocos.

Não posso ver sangue

Saturday, November 1, 2008

Dezesseis dias. Esse era o tempo que fazia que eu estava dormindo, almoçando e estudando em cima de um sofá-cama emprestado. No décimo sétimo dia divulgaram a lista dos aprovados. Meu nome, inclusive, era um deles. Comemorei com todas as pompas que eu merecia: uma pizza marguerita mais palmito só pra mim. Em cima do sofá-cama, claro. Na manhã seguinte fui rasgar meu contrato na cara do cara que cuidava das mensalidades. Yeah, eu ia fazer faculdade em outro lugar. Bom dia. Vim sair daqui, cancela tudo aí pra mim, por favor? Você é aluno de qual curso? Medicina – respondi, com o constrangimento próprio que essa palavra me inspira. Medicina veterinária? – ele, incrédulo perguntou. Engraçado. O senhor ouviu veterinária?

Quando o ônibus já passava por Florianópolis (nome que os mais antigos odeiam) entra uma loira e tento usar o poder da mente “Poltrona 18, poltrona 18, poltrona 18”. Como se tivesse lido nos meus olhos, a polaca senta ao meu lado. Coisa rara, ela é quem começa a conversa. Tá indo pra onde? Pelotas. Fazer o que lá? Me matricular na faculdade. Faculdade de quê? Medicina. Parabéns, você mereceu (como é que ela sabe?). Na particular? (ela ainda tinha essa chance). Não, na federal. Parabéns! Em que posição você passou? Você não vai acreditar – falei sorrindo. Tenta – ela falou, sorrindo mais. Passei em primeiro lugar – falei, com crueldade. Mesmo desconfiando da minha camiseta dos Ramones e do fato de eu não usar óculos, a polaca me deu os parabéns, mas olhando bem nos olhos pra ver se eu confessava que estava só brincando. Mas eu não confessei. Tampouco estava brincando.

Oi, qual o seu nome? Foi dessa genial maneira que puxei conversa no meu primeiro dia de aula. Carla, e o seu? Quando respondi, com o nome metido do primeiro colocado, Carla arregalou os olhos e com um tantinho assim de desdém perguntou “Ah, é tu??!” com um espanto tal que era como se meu nome fosse Buceta.

Ano e meio depois, eu, o Bira, o Renson e o Carnes vamos ao teatro. Era um daqueles em que os atores interagem com a platéia. Numa dessas, um cara vestido de Regina pergunta “Que curso vocês fazem?” Diante da verdade que constrange, os quatro silenciaram. Crio coragem e falo “Medicina”. “Você vai me desculpar, querido, mas tu não tem cara de medicina”. Eu sei, amiga, eu sei.